AS DUAS SOMBRAS

Na encruzilhada silenciosa do Destino,
Quando as estrelas se multiplicaram,
Duas sombras errantes
[1] se encontraram.

A primeira falou: — “Nasci de um beijo
De luz; sou força, vida, alma, esplendor
[2].
Trago em mim toda a sede do Desejo,
Toda a ânsia
[3] do Universo... Eu sou o amor.

O mundo sinto exânime
[4] a meus pés...
Sou delírio
[5]... Loucura... E tu, quem és?”

— “Eu nasci de uma lágrima. Sou flama
[6]
Do teu incêndio que devora...
Vivo, dos olhos tristes de quem ama,
Para os olhos nevoentos
[7] de quem chora.


Dizem que ao mundo vim para ser boa,
Para dar do meu sangue a quem me queira.
Sou a Saudade, a tua companheira
Que punge
[8], que consola e que perdoa...”

Na encruzilhada silenciosa do Destino,
As duas sombras comovidas se abraçaram
E de então, nunca mais se separaram.



(de Água Corrente, 1918)

[1] ERRANTE: que anda sem rumo.
[2] ESPLENDOR: brilho intenso.
[3] ÂNSIA: grande desejo e vontade.
[4] EXÂNIME: desmaiado.
[5] DELÍRIO: alucinação, ilusão.
[6] FLAMA: chama, fogo.
[7] NEVOENTOS: sombrio, triste.
[8] PUNGIR: causar dor, ferir, comover.