Que pelas brenhas[1] se perde,
No coração da Fazenda
Dorme a casa de vivenda.
Um pátio largo defronte,
Ao fundo azul — o horizonte
A crepitar, esbraseado[2],
Num crepúsculo[3] doirado.
A mata pesada, imensa,
Parece que sonha ou pensa...
Catedral verde que encerra
O culto simples da terra.
Abre-se um rio de prata
E, num fragor[4] de cascata,
Borbulha de duna em duna...
É o rio Saracuruna.
À tona[5] um enxame treme,
Se equilibra e vibra e freme[6],
E às vezes se desmorona
Como uma coluna, à tona...
Umas partem, outras voltam,
As asas doiradas soltam
Em nervosas tarantelas[7],
Brancas, verdes, amarelas.
Bate a porteira da entrada.
Sonolenta entra a boiada:
— Pintado! Moreno! Audaz!
Anda à frente, meu rapaz!
Um deles, o mais tristonho,
Que é pesado como um sonho,
Olhando o campo tão lindo,
Vai passando e vai mugindo...
Entre árvores surge a lua,
Branca e inteiramente nua,
Mostrando em suaves coleios[8],
O tronco, os braços, os seios...
Sobe e do alto descampado[9]
Espalha um véu de noivado
Com cintilações[10] estranhas
Pela encosta das montanhas...
Depois desce ao rio e o rio
Que roda sereno e frio,
Se enrosca num frenesi[11]:
— Beija-me as águas, Iaci!
O Saracuruna sonha...
Na marcha lenta e tristonha,
O rio lembra um vivente[12]
Porque chora e porque sente.
Vai sinuoso... Entra a devesa[13]
Levando na correnteza
Troncos, arbustos e ninhos
Que encontrou pelos caminhos.
E perde-se longe... agora
Nem sinal da água que chora...
Os rios são, com certeza,
O pranto[14] da natureza.
(de Água Corrente, 1918)
[2] ESBRASEADO: da cor da brasa.
[3] CREPÚSCULO: instante do nascer e do pôr do sol.
[4] FRAGOR: ruído muito forte.
[5] TONA: superfície.
[6] FREMER: tremer.
[7] TARANTELA: tipo de dança italiana.
[8] COLEIO: movimento sinuoso, aos ziguezagues, como o de uma serpente, de uma cobra.
[9] DESCAMPADO: terreno sem nada, desabitado.
[10] CINTILAÇÃO: brilho.
[11] FRENESI: entusiasmo, agitação.
[12] VIVENTE: que vive; criatura com vida.
[13] DEVESA: limite do terreno.
[14] PRANTO: choro, lágrimas.